Venda de decisões
Saiba como advogada de MT, esposa de lobista, triunfou no STJ
Mulher de pivô do escândalo de sentenças concentra processos no gabinete do ministro Moura Ribeiro
Geral | 07 de Novembro de 2025 as 15h 32min
Fonte: Revista Piauí

A revista Piauí revelou nesta semana que, por trás do suposto esquema de venda de decisões judiciais investigado pela Polícia Federal na Operação Sisamnes, quem mais triunfou no Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi a advogada Mirian Ribeiro Rodrigues de Mello Gonçalves.
Natural de Primavera do Leste, ela é esposa do lobista Andreson de Oliveira Gonçalves, suspeito de operar um “comércio de decisões” na Corte e no Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJ-MT). Ele está em prisão domiciliar. O suposto esquema foi revelado após a morte do advogado Roberto Zampieri, em Cuiabá.
A reportagem do jornalista Breno Pires mostra que, conforme a investigação, Andreson era o lobista responsável por atrair clientes e traficar influência — real ou simulada — nos tribunais. Já Mirian era a advogada cujos serviços eram formalizados em contratos milionários, muitos deles apontados como de fachada.
Conforme a reportagem, o Coaf identificou R$ 2,8 bilhões em operações suspeitas ligadas ao grupo do casal, envolvendo mais de 1,5 mil pessoas físicas e jurídicas. A empresa Florais Transportes, de Andreson, teria sido o principal canal para movimentação dos valores.
A reportagem detalha que a PF encontrou indícios de que o casal teve acesso antecipado a minutas de decisões, pagamentos a servidores e manobras para direcionar processos ao gabinete do ministro do STJ, Moura Ribeiro. Nesse gabinete, conforme a Piauí, Mirian obteve um desempenho fora do padrão: venceu 72,5% das 47 ações analisadas pelo jornalista, bem acima dos 43,5% de sucesso registrados em outros gabinetes.
Em 16 desses casos, segundo a reportagem, a advogada só foi contratada depois que o processo já estava com o ministro, sinalizando que sua capacidade de atuação ali era conhecida e valorizada.Entre os processos estão casos envolvendo o cantor Zezé Di Camargo, disputas fundiárias em Mato Grosso e litígios imobiliários.
Antes disso, segundo a reportagem, quem se destacava no gabinete de Moura Ribeiro era o próprio Andreson, que atuava usando uma carteira da OAB obtida irregularmente e posteriormente cassada. Entre 2018 e 2019, ele patrocinou cinco processos no STJ, três deles sob relatoria de Moura Ribeiro, e conseguiu reverter ao menos uma decisão, comemorando o feito em mensagens apreendidas pela PF.
Outro capítulo revelado pela Piauí envolve a J&F, grupo dos irmãos Wesley e Joesley Batista. O escritório de Mirian, conforme a reportagem, atuou em pelo menos 13 ações da holding no STJ, além de causas milionárias no TRF-1.
Em uma disputa bilionária sobre a falência do Banco Santos, ela conseguiu que Moura Ribeiro fosse o único ministro a votar a favor da Seara, empresa da J&F — decisão posteriormente revertida. Diante disso, a PF sugeriu uma investigação específica sobre os vínculos do casal com o grupo dos Batista.
Leia a íntegra da reportagem assinada pelo jornalista Breno Pires:
A família se reuniu em torno do morto com a gravidade de quem velava um segredo. Na noite em que o advogado Roberto Zampieri foi assassinado com doze tiros dentro do próprio carro, em Cuiabá, seu irmão Galileu não pediu justiça, nem vingança. Fez só uma exigência: que ninguém analisasse o iPhone 14 da vítima. Conforme consta no boletim de ocorrência, os policiais advertiram que a recusa em fazer uma perícia técnica no celular poderia atrasar a investigação do crime, mas o irmão insistiu. Disse que a família toda havia concordado em manter sigilo do conteúdo do celular. Na delegacia, ninguém sabia a razão de tanto segredo, nem o agente que fez a vistoria do veículo enquanto o corpo de Zampieri ainda estava no carro – ocasião em que a luz do celular da vítima acendeu de repente, sinalizando que uma mensagem havia acabado de chegar.
O aparelho foi então lacrado. Em 7 de dezembro de 2023, dois dias depois da morte de Zampieri, as coisas mudaram. Outro irmão da vítima, Giuseppe, autorizou a Polícia Civil a examinar o celular, com uma ressalva: os policiais deveriam extrair do aparelho apenas informações que pudessem esclarecer o crime. Nada além disso. A polícia começou então a perícia, enquanto continuava a investigação por outros meios. Não demorou a chegar ao principal suspeito do homicídio: Antônio Gomes da Silva, um senhor corpulento de 55 anos, que aparecera um mês antes no escritório de Zampieri e se apresentara como padre. Usava bengala, boina e óculos.
No escritório, o falso padre disse que queria comprar uma fazenda de Zampieri, localizada na Baixada Cuiabana. A compra seria feita em nome de um sobrinho que morava no Texas, nos Estados Unidos. Enquanto as negociações se desenrolavam, o falso padre esteve algumas vezes no escritório, ocasiões em que as câmeras captaram sua imagem sem boina, sem óculos e sem bengala, facilitando o reconhecimento mais tarde. Mas, depois do assassinato, o tal padre não apareceu mais no escritório – o que despertou as primeiras suspeitas. Detido, ele confessou: havia cobrado 40 mil reais para matar o advogado. Já tinha recebido metade do pagamento.
Com base em seu depoimento, a polícia localizou dois cúmplices: Hedilerson Fialho Martins Barbosa, um instrutor de tiro que trabalhou sob as ordens de Etevaldo Luiz Caçadini de Vargas, um coronel reformado que, por coincidência, foi colega de Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras, em 1977. Coronel Caçadini, como é conhecido, é um bandido de aluguel. Liderou um grupo chamado Comando C4 – “comando de caça a comunistas, corruptos e criminosos” – que oferecia serviços de espionagem e homicídio. Cobrava 250 mil para “monitorar” ministros do Supremo Tribunal Federal, 150 mil no caso de senadores e 100 mil no de deputados federais. Interrogado, o instrutor de tiro confessou sua participação no crime, apontou o envolvimento do coronel Caçadini, mas não deu a identidade do mandante.
O delegado Nilson Farias de Oliveira, responsável pela investigação, contava com a extração dos dados do celular de Zampieri para chegar ao mandante. O conteúdo foi arquivado em um HD interno Seagate, com 500 gigabytes, e colocado dentro de um envelope lacrado. O primeiro relatório sobre o conteúdo do celular entrou nos autos em 15 de fevereiro de 2024, mais de dois meses depois do homicídio. Tinha 39 páginas, reproduzia várias mensagens de WhatsApp e se circunscrevia às conversas entre os suspeitos, respeitando os limites estabelecidos pela família do morto. As informações ajudaram a elucidar alguns pontos, e parecia que se tratava de mais um homicídio comum em Cuiabá.
Mas havia aquela mensagem que piscara no celular ao lado do corpo de Zampieri. O agente que vistoriava o carro conseguiu ler a notificação da mensagem e as primeiras linhas. O remetente estava identificado como “Des Sebastião”. E o texto dizia: “Zampieri. Convivemos em harmonia e respeito por mais de 25 anos. Ganhava e perdia nos meus votos e [você] sempre mostrava ser um advogado consciente. Deus o tenha. Que o receba de braços abertos.” Quem mandaria uma mensagem para um conhecido que acaba de morrer para desejar boa entrada no Paraíso? A resposta veio logo: “Des Sebastião” era o desembargador Sebastião de Moraes Filho, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. (Indagado sobre a razão da mensagem, o desembargador disse: “Sou católico fervoroso e não vejo nada de errado nisso. Sou vítima, nunca recebi nada. Decidia a maioria contra seus interesses”.
Na vistoria do carro, o agente havia feito outra descoberta: encontrara um papel encharcado de sangue, com anotações sobre processos que estavam sob a relatoria de outro desembargador, João Ferreira Filho, que, como Sebastião de Moraes Filho, também integrava a 1ª Câmara Cível de Direito Privado do Tribunal de Justiça. Era natural que um advogado tivesse anotações do tipo, mas os investigadores registraram o fato de que aquela Câmara julga disputas fundiárias entre produtores do agronegócio – um tema que, em Mato Grosso, pode levar uma família da pobreza ao primeiro bilhão em uma única geração.
O enredo começou a fazer sentido quando a Polícia Civil chegou ao mandante do homicídio: Aníbal Manoel Laurindo, veterinário e dono de terras. No dia do crime, 5 de dezembro de 2023, Laurindo trocou telefonemas com o coronel Caçadini. Eles eram próximos. Participavam de dois grupos bolsonaristas – o Frente Ampla Patriótica e o 100% Conservadores. No fim de outubro, enquanto o crime ainda estava sendo arquitetado, a dupla chegou a se encontrar em um evento da tal frente patriótica, conforme ficou registrado em uma postagem no Instagram.
Laurindo ordenou o assassinato porque suspeitava que Zampieri estava usando sua influência sobre os desembargadores para esbulhar uma propriedade rural de seu irmão, avaliada em 100 milhões de reais. Em 7 de fevereiro de 2024, a polícia pediu a prisão de Laurindo e de sua mulher. No mesmo dia, o Ministério Público denunciou os três comparsas – o matador e a dupla que arquitetou o crime. O juiz Wladymir Perri aceitou a denúncia, transformou os três suspeitos em réus e mandou liberar o acesso aos dados extraídos do celular de Zampieri. Quatro dias depois, determinou “a imediata restrição das informações contidas no celular apreendido da vítima”, ordenou que qualquer pedido de acesso ao conteúdo deveria ser apresentado a ele próprio e disse que todas as futuras manifestações da Polícia Civil deveriam ser entregues de forma física – e não digital. Sinal de que temia vazamentos.
Daí em diante, Perri tomou uma série de atitudes que chamaram a atenção, principalmente sua decisão de violar o lacre do envelope que continha o HD com dados do celular, sem a necessária presença dos promotores. (Procurado, o juiz não quis falar com a piauí.) Alarmado, o Ministério Público resolveu denunciá-lo ao Conselho Nacional de Justiça, em Brasília. Quando o CNJ, que comanda processos disciplinares contra magistrados, recebeu a denúncia, o caso, que inicialmente parecia se limitar a um homicídio em Cuiabá, pela primeira vez ultrapassou as divisas de Mato Grosso.
Enquanto todos os envolvidos – juiz, promotores, acusados – se engalfinhavam em torno dos dados do celular, surgiu uma nova tentativa de jogar um manto de silêncio sobre o caso. A viúva Adriana Zampieri contratou o vice-presidente da OAB de Mato Grosso, o advogado Giovane Santin, e pediu a devolução do celular ou a destruição do HD com os dados. Queria dar um sumiço em todas as informações que não haviam sido incluídas no relatório policial, pois não se referiam ao homicídio sob investigação. Abriu-se então uma batalha pelos segredos do celular.
Com “perplexidade e preocupação”, o Ministério Público voltou a acionar o CNJ, temendo que as provas fossem destruídas. Atendendo ao pedido, o ministro Luis Felipe Salomão, corregedor do CNJ, pediu cópia de todo o material. O advogado da viúva recorreu, mas voltou a perder. Houve então um pedido de reconsideração, mas, mais uma vez, Salomão negou. Queria cópia de tudo sobre a sua mesa. E tinha razão.
Em Cuiabá, chegou-se a estudar a possibilidade de mandar um servidor de carro até Brasília, levando todas as cópias. As duas cidades ficam a mais de 1 mil km de distância uma da outra. Por sorte, a operação foi abortada quando alguém alertou que seria preciso providenciar uma segurança reforçada, capaz de enfrentar uma eventual emboscada na estrada, já que, àquela altura, estava claro que o caso mexia com interesses poderosos. O material, então, foi levado por uma juíza do Tribunal de Justiça, que viajou de avião até Brasília. Quando o CNJ finalmente iniciou o exame dos dados, um mundo clandestino começou a ser descortinado. Era o início do que logo se transformaria no maior escândalo de corrupção na história do Judiciário brasileiro.
Ogabinete do ministro Luis Felipe Salomão analisou mais de 9 mil mensagens do celular de Roberto Zampieri. De imediato, ficou evidente que os dois desembargadores de Mato Grosso, Sebastião de Moraes Filho e João Ferreira Filho, negociavam vantagens financeiras e presentes caros para julgar recursos de interesse do advogado. Segundo as investigações da Polícia Federal, as mensagens revelam que as propinas podiam ser pagas de diversas formas: dinheiro em espécie, barras de ouro ou relógios caros, como um Patek Philippe, estimado em 75 mil dólares.
Outra forma de pagamento se dava por meio da inclusão de familiares dos desembargadores em contratos milionários de prestação de serviços advocatícios. O nome do advogado Mauro Thadeu de Moraes, filho do desembargador Sebastião de Moraes Filho, por exemplo, entrou num contrato de 12 milhões de reais em troca de uma decisão favorável. Nas mensagens dos criminosos, a inclusão do filho era para “acertar as honrarias”. O ministro Salomão enxergou aí um “cenário gravíssimo” e, em agosto de 2024, afastou os dois desembargadores de suas funções. No mês seguinte, a Polícia Federal abriu um inquérito, comandado pelo delegado Marco Bontempo.
Mas as 9 mil mensagens guardavam segredos ainda mais potentes. Os personagens de maior relevância do esquema de corrupção, na verdade, eram outros: o casal formado por Andreson de Oliveira Gonçalves, que usou por dois anos uma carteira da OAB do Pará obtida de forma ilícita, e sua mulher, a advogada Mirian Ribeiro Rodrigues de Mello Gonçalves, dona de um escritório em Primavera do Leste, no interior de Mato Grosso. Segundo a investigação da PF, ele era o lobista que atraía clientes e traficava influência sobre os tribunais – influência às vezes real, outras vezes fictícia. Ela era a advogada cujos préstimos eram formalizados em contratos milionários – contratos às vezes reais, outras vezes de fachada.
A investigação sobre o trabalho da dupla revelou que a rede de corrupção não estava limitada ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso, mas chegava a Brasília. O epicentro de sua atuação era o Superior Tribunal de Justiça, a segunda mais alta instância da Justiça brasileira, abaixo apenas do Supremo Tribunal Federal. Nas mensagens examinadas pela PF, há indícios claros de que Andreson Gonçalves tinha acesso antecipado a minutas de decisões dos ministros do STJ e, ainda mais grave, subornara servidores para que as sentenças fossem moldadas aos interesses de seus clientes.
Os investigadores da Polícia Federal se surpreenderam com a dimensão do esquema quando tiveram acesso ao primeiro relatório do Coaf, o órgão do Banco Central que fiscaliza as operações financeiras e combate a lavagem de dinheiro. O relatório dizia que Zampieri e o casal Gonçalves haviam feito centenas e mais centenas de operações suspeitas, que envolveram 1,5 mil pessoas físicas e jurídicas e movimentaram um total de 2,8 bilhões de reais. O canal preferencial de Andreson Gonçalves para circular a dinheirama era a sua empresa Florais Transportes.
O relatório do Coaf também trouxe uma informação que mudaria o curso do processo. O documento informava que a advogada Mirian Ribeiro, como é conhecida a mulher de Gonçalves, fez pagamentos que somaram 900 mil reais e, em meio a essas transações, havia o nome de uma autoridade com direito a foro privilegiado no STF. Diante disso, todo o caso – do homicídio em Cuiabá à influência criminosa no STJ – subiu para o STF, onde ficou sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin. Mais tarde, o Coaf detalhou que a autoridade com direito a foro privilegiado era o ministro-substituto Augusto Sherman Cavalcanti, do Tribunal de Contas da União. Em pouco tempo, no entanto, descobriu-se que a operação do ministro era uma banalidade: constava uma transferência de apenas 670 reais. Mesmo diante do valor inexpressivo, a Polícia Federal pediu que o caso fosse mantido no STF, já que as investigações atingiam agora gabinetes do STJ e poderiam, em tese, apontar o envolvimento de outras autoridades com direito a foro privilegiado. (Fontes ouvidas pela piauí afirmam que, se não houvesse envolvimento de alguma outra autoridade com foro, o caso já teria saído do STF.
Em novembro de 2024, apenas um mês depois de assumir o caso, Zanin autorizou a Polícia Federal a deflagrar a primeira fase da Operação Sisamnes, que passou a investigar a rede de favores judiciais, de Cuiabá a Brasília. Escreveu: “A atuação do investigado Andreson de Oliveira Gonçalves é demonstrada de forma veemente nos autos, revelando-se bastante indiciária sua decisiva função no verdadeiro comércio de decisões judiciais no Superior Tribunal de Justiça.” Em seguida, escreveu que era cedo para qualquer julgamento, mas o exame do caso denotava “um sistema de pagamento de decisões judiciais e de informações processuais privilegiadas que envolve intermediadores, advogados e servidores públicos”.
A operação policial iluminou a atuação de Gonçalves em Brasília. No STJ, ele chegou a constar como advogado em alguns processos, mas seu forte era o comércio de influência. Um lobista tende a atuar em três níveis diferentes nos tribunais. Pode ter acesso aos servidores que trabalham com o magistrado e costumam auxiliá-lo na redação das sentenças. Pode também contemplar parentes do magistrado com contratos polpudos, uma alternativa sempre à disposição, considerando que há hoje uma infestação de filhos, filhas, esposas, maridos e ex-cônjuges de ministros advogando em Brasília. Ou, numa terceira modalidade, pode ter acesso, ele mesmo, ao magistrado, regalando-o com empréstimos de jatinhos, palestras, viagens, hospedagens.
Zampieri e o casal Gonçalves criaram um modelo híbrido. Dono de quatro aeronaves, Gonçalves costumava emprestá-las para autoridades na capital federal. (A PF investiga a lista de quem já desfrutou da regalia.) Ao mesmo tempo em que oferecia favores, montou uma rede estável de servidores corruptos lotados em gabinetes de ministros do STJ. Até agora, as múltiplas ramificações das investigações já chegaram, com níveis bastante variáveis de suspeita, em servidores de onze gabinetes – um dos quais pertencia ao ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que faleceu em 2023. Para um tribunal com um total de 33 ministros, é uma proliferação alarmante. No estágio atual do trabalho, ainda não se sabe se algum ministro do STJ está respondendo a inquérito. Até prova em contrário, é um esquema que se infiltrou nos gabinetes à revelia dos juízes.
O caso mais notório envolve o servidor Márcio José Toledo Pinto. É um ex-sargento da Aeronáutica, que foi condenado por roubo de equipamento eletrônico das Forças Armadas. Entre 1994 e 1995, afanou um notebook, dois computadores (com monitor, mouse e teclado) e impressoras. Em 1998, por decisão do Superior Tribunal Militar, pegou quatro anos de prisão em regime semiaberto e acabou expulso da corporação. (Ele disse à piauí que foi coagido a assumir um crime que nunca cometeu.) Mais tarde, Toledo Pinto virou funcionário do STJ. Foi assessor do gabinete da ministra Isabel Gallotti durante quatro anos e, depois, do gabinete da ministra Nancy Andrighi – até que começaram as investigações sobre venda de sentenças. Nos dois postos, segundo mensagens acessadas pela PF, Toledo Pinto vazou minutas das duas ministras e atualizou os criminosos sobre trâmites das ações. “Voto pronto e enviado para vc”, diz uma mensagem remetida aos mercadores de sentença.
Em março de 2021, Toledo Pinto abriu uma empresa de transporte em nome da sua mulher. Batizou-a de Marvan, fusão das três letras iniciais do seu primeiro nome (MÁRcio) e da mulher (VANessa). Em apenas dois anos e meio, mesmo sem ter um único funcionário registrado, a Marvan recebeu 4 milhões de reais em 45 transferências – média de 130 mil reais por mês. Todas as transferências foram feitas pela Florais Transportes, a empresa de Andreson Gonçalves. (Um detalhe: a Florais e a Marvan tinham o mesmo contador.) Não deve ser apenas uma coincidência que a Marvan tenha deixado de receber depósitos da Florais justamente em dezembro de 2023, quando Zampieri foi assassinado em Cuiabá. Em setembro passado, o ex-sargento da Aeronáutica foi finalmente demitido do STJ. À piauí, ele refutou todas as acusações – “estou plenamente convicto de que minha inocência será provada” e disse que sobre a Marvan irá se “manifestar apenas em juízo”.
Outro servidor sob investigação é Daimler Alberto de Campos, que ocupou por mais de uma década a chefia de gabinete da ministra Isabel Gallotti. A PF suspeita que ele operava como fonte de Gonçalves, fornecendo informações sigilosas e antecipando o teor de decisões. A piauí apurou que, na montanha das 9 mil mensagens, a secretária de Zampieri – identificada como Dayse – demonstra que tinha acesso recorrente a Daimler Campos. Nas mensagens em que dá retornos a Zampieri, Dayse informa o resultado de seus contatos com Daimler Campos – que a análise será “feita em breve”, que a assessoria “será cobrada”, que os “recursos estão adiantados”.
A quebra de sigilo bancário dos investigados mostra que, entre 2019 e 2023, Daimler Campos recebeu 8,8 milhões de reais em sua conta-corrente, uma quantia aparentemente muito acima de sua capacidade financeira. Nas mensagens de celular, Gonçalves também aparece cobrando de Zampieri a remessa de valores que seriam destinados a Daimler Campos. No entanto, os investigadores ainda não sabem dizer se Gonçalves de fato tinha propinas a pagar ao servidor, ou se estava inventando uma lorota para embolsar o dinheiro. Um indício da manobra é que o telefone atribuído a Daimler Campos na agenda do celular de Gonçalves não pertence ao assessor.
Bernardo Fenelon, o advogado de Daimler Campos, mandou uma nota à piauí em que afirma o seguinte: “A apuração demonstra claramente que o nome do nosso cliente, assim como outras diversas autoridades, foi utilizado de forma espúria e ilícita. É nítido que o grupo criminoso falseava, em grande parte, relações fictícias para vender influências fictícias. No caso de Daimler, isso é comprovado de forma incontestável pela própria investigação. Após mais de um ano de apurações, nenhum elemento, nenhum indício o vincula aos ilícitos. Basta verificar que os contatos salvos e as conversas identificadas pertencem a terceiros. São pessoas que ele absolutamente desconhece! Infelizmente, fica nítido que a autoridade policial optou por não investigar tais pessoas.”
Sobre as movimentações financeiras, Fenelon afirma: “Ainda que inicialmente pudessem gerar alguma dúvida, referem-se, na verdade, a empréstimos bancários e dívidas de cartões de crédito. O que poderia e deveria ter sido, facilmente, identificado pela quebra de sigilo. […] Todos esses pontos serão devidamente esclarecidos pela defesa técnica, e a injustiça à qual o nosso cliente está sendo submetido ficará cristalina.”
Além de Daimler Campos, o servidor Rodrigo Falcão de Oliveira Andrade, que chefiava o gabinete do ministro Og Fernandes desde 2008, também está sob investigação. Identificado nas mensagens de Zampieri como o “amigo do Og”, Falcão, como é conhecido, pode ter municiado o grupo com informações sigilosas sobre a Operação Faroeste, que estava sob a relatoria de Og Fernandes e, ironicamente, investigava um esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça da Bahia.
No caso de Falcão, assim como aconteceu na investigação sobre Toledo Pinto, a Polícia Federal também encontrou vestígio de dinheiro. Ao analisar os dados da quebra do seu sigilo bancário, os investigadores constataram que o ministro Og Fernandes fez 82 transferências financeiras para o servidor entre março de 2020 e dezembro de 2023. Os valores das operações, que totalizaram 900 mil reais, costumavam oscilar entre 15 mil e 30 mil reais. A primeira transferência ocorreu em 24 de março de 2020, data em que se deflagrou uma nova fase da Operação Faroeste.
O relatório da PF, porém, ressalva: “Tal coincidência financeira, por ora, não revela indicativo apto a levantar suspeita sobre o ministro Og Fernandes, mas […] é uma informação que não deve ser descartada.” Em conversa com a piauí, Og Fernandes explicou a situação: “Ele fazia todos os pagamentos meus, que são variados, seja aqui em Brasília, seja na minha terra natal [o magistrado é natural do Recife]. Ele me informava quanto eu tinha que pagar em relação aos meus compromissos, eu repassava o valor, ele pagava e acabou. Era isso.”
A PF encontrou outra ponta financeira de Falcão. Em uma operação de busca e apreensão em seu apartamento no bairro de Boa Viagem, no Recife, os agentes localizaram três caixas de relógios da marca Rolex. As caixas não continham mais os relógios, apenas as notas fiscais da compra. Um cupom fiscal indicava que o pagamento de 106 mil reais foi feito em dinheiro. Outro informava que o relógio custara 160 mil reais, que foram pagos em duas parcelas. Diante desses indícios, o relatório afirma que há uma “aparente incongruência entre o padrão de vida do investigado e os seus rendimentos lícitos”. (O ministro Og Fernandes exonerou Falcão no dia 26 de novembro de 2024.
O advogado de Rodrigo Falcão, Célio Avelino, disse que seu cliente – e também sobrinho – não vazou informações sigilosas nem participou de qualquer esquema. “Não há nada a apurar contra ele”, disse. O advogado também afirma que as transferências do ministro Og Fernandes “decorrem de compromissos pessoais”. Em relação aos bens, afirmou que boa parte do dinheiro de Falcão vem da herança. Seu pai foi desembargador no Tribunal de Justiça de Pernambuco. Avelino acrescentou que, recentemente, a OAB autorizou Falcão a advogar, o que, em sua visão, “reforça sua idoneidade”.
As investigações, de fato, precisam separar fatos e versões, pois Gonçalves tinha uma inclinação para manipular e mentir. A PF suspeita que dois documentos supostamente vazados por Falcão eram, na verdade, uma invenção de Gonçalves. Em mensagens, Gonçalves diz que recebeu de Falcão cópias de uma minuta da Procuradoria-Geral da República e de uma decisão do ministro Og Fernandes. Mas os metadados dos arquivos mostram que uma mudança inserida num documento foi obra de um usuário chamado Wesley Luiz. Os agentes da PF suspeitam que se trata de um sobrinho de Gonçalves, que trabalha como gerente da Florais Transportes.
A piauí também investigou a autenticidade dos documentos e concluiu que são inteiramente falsos. O documento da PGR está assinado por uma subprocuradora que, na época, nem atuava no caso. Quanto à decisão do ministro Og Fernandes, os dados da identificação do processo e do código de registro referem-se, ambos, a outros processos – um dos quais só seria protocolado um ano depois. Ou seja: tudo indica que Gonçalves de fato tinha acesso a decisões verdadeiras, mas também falsificava ou recebia decisões e minutas falsas para extorquir os réus endinheirados, dizendo que só sua mulher, a advogada Mirian Ribeiro, seria capaz de reverter a situação. Ela, então, era contratada.
Ogabinete do ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro espelha essa dinâmica. Logo no início da Operação Sisamnes, a Polícia Federal abriu uma investigação em separado para esse caso que, até agora, continua sob sigilo. O que se sabe é que as suspeitas iniciais giravam em torno da servidora Waleska Bertolini Vieira Mussalem, que trabalhava com o ministro Moura Ribeiro desde 2016 e hoje está lotada no setor de pesquisa bibliográfica do STJ. Na época, as investigações flagraram uma coincidência. No mesmo dia em que a servidora elaborou a ementa, o relatório e o voto do ministro em um processo, Andreson Gonçalves disse em uma mensagem que tinha acabado de falar “com a Valesca”.
Além disso, desde a sua primeira análise das 9 mil mensagens, o ministro Luis Felipe Salomão, corregedor do CNJ, registrou que Gonçalves recebera antecipadamente várias minutas do gabinete de Moura Ribeiro, onde o lobista se vangloriava de ter proximidade com servidores. Diante disso, na representação da primeira fase da Sisamnes, a PF pediu que Waleska Mussalem fosse afastada de suas funções e submetida a uma operação de busca e apreensão, mas o ministro Cristiano Zanin, do STF, achou que os indícios de envolvimento da servidora eram insuficientes.
Uma investigação da piauí, no entanto, revela que a advogada Mirian Ribeiro nadava de braçada nos bastidores do gabinete de Moura Ribeiro. (Apesar do sobrenome, não há qualquer relação de parentesco entre eles.) De alguma forma, a advogada conseguia concentrar seus processos no gabinete do ministro. Desde que atua no STJ, a advogada já teve 201 processos tramitando na corte – 47 dos quais passaram pelo gabinete de Moura Ribeiro. A concentração não se explica pela área de atuação do magistrado, considerando que outro colega, Marco Buzzi, que também atua no campo do direito privado, é relator de apenas quatro processos.
A outra curiosidade é a robusta taxa de sucesso da advogada nas 47 ações. Excluindo os casos em andamento ou já encerrados por acordo, a análise da piauí mostra que Mirian obteve 29 vitórias. Ou seja, venceu em 72,5% dos casos em que atuou. É um índice excepcional, à luz do fato de que, em ações que circularam pelos gabinetes de outros ministros, seu placar de vitórias ficou em 43,5%. Por fim, há um terceiro aspecto que chama a atenção. Em dezesseis casos, a advogada só foi contratada quando o processo já estava sob a relatoria de Moura Ribeiro, um indicativo de que seu sucesso naquele gabinete era um atrativo para a clientela. Alguns exemplos:
* Uma ação em que o cantor Zezé di Camargo contestava uma dívida com a empresa de saneamento de Goiás caiu nas mãos do ministro Moura Ribeiro num dia e, no dia seguinte, Mirian foi contratada para defender o artista. Ganhou a causa.
* Outra ação, movida por uma empresa do agronegócio, envolvendo uma disputa fundiária em Mato Grosso, chegou ao gabinete do ministro num dia e, também no dia seguinte, a advogada assinou contrato. Ganhou de novo.
* Em um terceiro processo, em que compradores e vendedores brigavam em torno de três lotes rurais em Alto Floresta, em Mato Grosso, Mirian foi contratada 23 dias depois que o ministro Moura Ribeiro virou relator do caso. Mais uma vez, saiu vitoriosa.
* Em outra ação, na qual uma incorporadora pedia o reconhecimento de um contrato de permuta de imóveis, deu-se uma dinâmica diferente. O caso caiu nas mãos de Moura Ribeiro em agosto de 2021 e empacou. Depois de um ano com o processo parado, Mirian foi contratada – e pouco mais de um mês depois a ação voltou a andar. Ganhou de novo.
A piauí descobriu também que quem primeiro advogou em processos no gabinete de Moura Ribeiro foi o próprio Andreson Gonçalves, até que sua carteira da OAB foi cassada. Entre 2018 e 2019, ele tinha cinco processos no STJ, três dos quais no gabinete de Moura Ribeiro. Em um deles, Gonçalves tentava derrubar o bloqueio de uma herança de seus clientes, mas não vinha obtendo sucesso. Quando o caso chegou ao gabinete do ministro, Gonçalves virou o jogo. Assim que saiu o desbloqueio, ele comemorou em mensagem enviada para Zampieri: “Esse caso tinha dado para outra parte. Consegui reverter.”
Procurado pela piauí, o ministro Moura Ribeiro não quis falar.
Em que pese manter um modesto escritório em Primavera do Leste, cidade a três horas de Cuiabá, Mirian Ribeiro chamou a atenção de um dos maiores grupos empresariais do Brasil: a J&F, a holding dos irmãos Wesley e Joesley Batista. A advogada defendeu empresas do grupo – que inclui a gigante JBS – em treze ações na corte. É uma das razões pelas quais, no seu relatório mais recente, a PF propõe uma investigação em separado sobre a “relação de ANDRESON e MIRIAN RIBEIRO com o grupo JBS”.
Um dos casos examinados pela polícia ocorreu em 21 de agosto de 2020, quando a ministra Nancy Andrighi publicou sua decisão numa ação de 600 milhões de reais que envolvia a Eldorado Brasil, outra empresa dos irmãos Batista. O fato sob investigação é que a decisão já estava nas mãos dos interessados oito dias antes da publicação, como se depreende de uma conversa entre Gonçalves e Zampieri.
A piauí encontrou um caso em que os irmãos Batista tentavam reverter uma penhora no valor de quase 90 milhões de reais e vinham acumulando derrotas. Depois de perder na segunda instância, recorreram ao STJ. A ação caiu nas mãos do ministro João Otávio de Noronha, que decidiu contra os Batista. Depois disso, o caso parou de avançar, atolado na burocracia do tribunal. Os Batista então contrataram Mirian Ribeiro para atuar no processo, ao lado de outros dois advogados. Perderam mais uma vez, ganharam em outra decisão, voltaram a perder, e a causa se prolongou tanto que a outra parte, o Banco Arbi S.A., decidiu fazer um acordo. Ouvido pela piauí, um advogado do banco, que pediu para não ter sua identidade revelada, disse que nunca entendeu a razão do acordo. “Só fui informado da decisão. Confesso que fiquei um pouco frustrado.”
O escritório de Mirian Ribeiro também foi contratado pela JBS para atuar numa causa de 44 milhões de reais que tramitava no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, a corte onde são processadas causas do Distrito Federal e mais doze estados do Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Entre idas e vindas, o caso se prolongou por cerca de cinco anos, mas acabou rendendo mais uma vitória para os Batista, que foram isentados de pagar os 44 milhões à União.
Aparentemente, a J&F também percebeu a taxa de sucesso de Mirian no gabinete do ministro Moura Ribeiro. Tanto que, antes da deflagração da Operação Sisamnes, a holding chamou a advogada para atuar em dois processos que já estavam sob a relatoria de Moura Ribeiro. No primeiro caso, a advogada foi contratada onze meses depois que o caso caiu com o ministro. No outro, cinco meses depois.
Em um deles, a Seara, mais uma empresa do grupo J&F, havia perdido em todas as instâncias numa disputa bilionária sobre a falência do Banco Santos. Contratada, Mirian conseguiu uma virada e tanto. Dentre todos os julgadores do caso em todas as instâncias, Moura Ribeiro foi o único a votar em favor da causa dos Batista. Mas não durou muito. Quando o assunto foi submetido a uma das turmas do STJ, Moura Ribeiro ficou isolado e a maioria do colegiado votou por restabelecer a derrota da Seara.
Em nota à piauí, a J&F informou que o escritório de Mirian Ribeiro não presta mais serviços ao grupo desde que as primeiras denúncias foram divulgadas. As revogações, no entanto, não constam nos processos em curso no STJ.
Aanálise do celular de Roberto Zampieri sugere que dois empresários estavam entre os grandes mercadores de decisões judiciais: Valdoir Slapak e Haroldo Augusto Filho, sócios em uma empresa com sede em Cuiabá, o grupo Fource – que repassou ao advogado morto nada menos que 22 milhões de reais no período sob investigação. Slapak é considerado o cérebro, enquanto Haroldo Filho é o rosto mais visível da Fource. Antes de chegar em Mato Grosso, Haroldo Filho ganhou o noticiário policial em Rondônia ao ser flagrado em desvios milionários na Assembleia Legislativa. Fez delação, ganhou uma redução de pena, cumpriu prisão em regime semiaberto, deixou Porto Velho e refez a vida em Mato Grosso, onde se vinculou ao Grupo Fource.
Para a Polícia Federal, a Fource “estruturou-se como pilar de impulsionamento do esquema criminoso em apuração”, fazendo a ponte entre empresários e operadores. Um dos indícios está numa transação realizada em 30 de março de 2020. Nesse dia, um fundo administrado pela Fource, o Afare I, participou de uma triangulação de 4 milhões de reais que envolveu Zampieri e a Florais Transporte, a empresa de Andreson Gonçalves que distribuía a propina.
A triangulação, segundo suspeita a PF, pode estar relacionada à manobra para evitar que um grande produtor rural, Nelson Vigolo, dono da Bom Jesus Agropecuária, fosse preso no âmbito da Operação Faroeste, que investigava venda de sentenças na Bahia. A PF encontrou uma mensagem em que Andreson Gonçalves afirma, em linguagem cifrada, que Vigolo seria o único suspeito a se livrar da prisão na Operação Faroeste. Gonçalves informa também que Mirian, sua mulher, havia sido contratada por 3 milhões de reais para defender Vigolo. Tudo isso – as conversas e a triangulação – ocorreu no mesmo dia 30 de março de 2020. (Entre os investigados graúdos da Operação Faroeste, Vigolo foi o único a escapar da prisão. Mais tarde, fez um acordo de delação, concordou em pagar 20 milhões de reais e, se condenado, cumprirá um ano de prisão domiciliar.
Há indicações de que o grupo Fource pode ter entrado no comércio de sentenças ao operar a recuperação judicial da agropecuária Bom Jesus. Para resolver a vida da empresa de Nelson Vigolo, a Fource enveredou por um caminho de irregularidades que, ao fim e ao cabo, exigia sempre o verniz de alguma decisão judicial – e aí começou a entrar nesse universo, primeiro em Mato Grosso e, em seguida, em Brasília. A PF investiga a origem de tudo. Está apurando o papel do juiz Renan Leão, da 4ª Vara Cível da Comarca de Rondonópolis, a 220 km de Cuiabá. Leão avalizou todo o processo de recuperação judicial da Bom Jesus. Procurado pela piauí, o juiz disse que todas as vezes que tratou da recuperação judicial da Bom Jesus foi “sempre através de advogado”. Também negou ter contato com Vigolo, Haroldo Filho ou Zampieri.
Em nota enviada à piauí, a Fource critica duramente as investigações da Polícia Federal. Diz que são “ilações” baseadas em “mensagens e documentos descontextualizados” e afirma que “é grave e preocupante que a PF, em vez de apurar fatos com isenção, adote uma postura que beira o denuncismo e alimente narrativas midiáticas sem provas”. Em defesa da idoneidade da empresa, afirma: “Até o momento não há qualquer indiciamento, denúncia ou processo com crimes tipificados contra a Fource e seus sócios; portanto, juízos de valor veiculados em relatórios ou na imprensa são meramente opinativos.” A nota ainda lembra que a PF “não apontou até aqui qualquer caso concreto de ‘venda de sentença’ que tenha favorecido a Fource”.
A piauí descobriu, no entanto, que as ligações entre a Fource e Vigolo podem ser mais profundas do que a PF registrou até agora em seus relatórios. Existe até sobreposição no quadro de funcionários, com diretores do Grupo Fource também atuando como diretores em empresas de Vigolo. Um relatório do Coaf, ao qual a piauí teve acesso, informa que o fundo Afare I transferiu 21,3 milhões de reais, em favor do pai de Vigolo. Outra ligação: o Afare comprou créditos da recuperação judicial da Bom Jesus. No fim de 2018, tinha um saldo de 40 milhões de reais. A Fource nega as conexões: “Sobre o empresário Nelson Vigolo e suas empresas, não há nem houve relação hierárquica de qualquer natureza entre todos os envolvidos desde a constituição da Fource […]. Eventuais interações foram de caráter estritamente negocial e dentro da legalidade e dos objetivos de cada uma das partes envolvidas”. À piauí, Vigolo também negou qualquer vínculo dele e da Bom Jesus com a Fource.
Seguindo seu padrão de atuação, Andreson Gonçalves, segundo mensagens examinadas pela PF, insistiu com os prepostos de Vigolo de que a única forma de livrar o agropecuarista da prisão na Operação Faroeste seria contratando o escritório de sua mulher, Mirian. As mensagens mostram tratativas com sócios da Fource para que ela e três advogados fossem contratados. Ouvidos pela piauí, os três profissionais confirmaram que houve negociações para atuar no processo, mas afirmaram que o negócio não foi fechado. Um deles, Alexsander Martins, ao ser informado pela piauí que Mirian foi a única contratada e levou 3 milhões de reais, espantou-se. “Se teve esse pagamento, então Andreson nos sacaneou.”
Mais do que passar a perna nos três advogados, Andreson Gonçalves pode ter passado a perna no próprio Vigolo e seus prepostos da Fource, incorrendo em outro caso de fabulação. A PF não descarta a hipótese de que Gonçalves sabia que o agropecuarista não seria preso e inventou o risco de prisão apenas para chantageá-lo a contratar Mirian. (À piauí, o ministro Og Fernandes disse que a Procuradoria-Geral da República nunca fez pedido de prisão contra Vigolo.) Antes de sua mulher assinar o contrato de 3 milhões, Gonçalves ficou ameaçando que “o amigo” podia mandar prender o agropecuarista. “Moço, o amigo está o veneno”, escreveu. “Já falou que vai deixar todo mundo preso.” No fim, Vigolo pagou – ou melhor, seus prepostos da Fource pagaram. A suspeita indica que o lobista trapaceava qualquer um, ora vendendo decisões jurídicas reais, ora vendendo decisões fictícias.
Os sócios da Fource, é claro, não estavam interessados em comprar segredos judiciais fictícios. Em mensagem de 10 de agosto de 2023, por exemplo, Gonçalves compartilha com Zampieri duas minutas elaboradas pelo gabinete da ministra Nancy Andrighi, referentes a um assunto de interesse de Haroldo Filho, da Fource. As minutas eram reais e verdadeiras, mas o vazamento deu errado. Quando divulgou sua decisão, a ministra havia alterado as duas.
Neste caso, há uma suspeita ainda mais grave. A sindicância do STJ concluiu que quem vazou as minutas da ministra foi Toledo Pinto, o ex-sargento que virou servidor do STJ. De acordo com a análise no sistema interno do tribunal, Toledo Pinto editou, salvou, imprimiu e logo excluiu o conteúdo de cada um dos dois processos no intervalo de minutos, de modo que ninguém mais pudesse acessar o teor do documento. Isso ocorreu duas vezes, em 22 de junho e 28 de junho de 2023. A suspeita é que Toledo Pinto possa ter inserido alterações para atender aos pleitos de Gonçalves e Zampieri a fim de beneficiar a Fource. É um caso alarmante, no qual o lobista pode ter chegado ao ponto de conseguir mudar uma decisão judicial – ainda que a mudança não tenha prevalecido. Toledo Pinto também nega envolvimento.
Todo ano, a Fource patrocina um congresso sobre recuperação de empresas, promovido pela OAB de Mato Grosso. No ano passado, cinco ministros do STJ voaram para Cuiabá para participar do congresso. Um deles, João Otávio de Noronha, viajou a bordo de um jato da Fource. Abordado pelo jornal O Estado de S. Paulo, Noronha disse que pensava estar numa aeronave da OAB, mas deixou escapar que não viajara sozinho. Ele não identificou os outros passageiros, mas um deles era o ministro Raul Araujo Filho, que confirmou à piauí, mas disse que não sabia quem era o dono da aeronave. Em sua nota, a Fource afirma que “sempre buscou patrocinar e apoiar eventos organizados por instituições sérias, idôneas e com a participação de pessoas que pudessem compartilhar conhecimento. Foram eventos realizados com transparência, respeitando regras aplicáveis a entidades de classe e patrocínios privados”.
Haroldo Filho, o rosto visível da Fource, também aplicou a estratégia de tentar se aproximar de parentes dos ministros. A Polícia Federal lhe atribui “influência direta em alguns gabinetes, circunstância que lhe permitia, nesses casos, transitar seus interesses processuais sem a necessidade de recorrer a intermediários”. Segundo reportagem publicada pelo Estadão, Anna Carolina Noronha, filha do ministro João Otávio de Noronha, do STJ, acabou tendo proximidade com a Fource. O jornal revelou que Anna Carolina recebeu 300 mil reais da Afare I, o fundo da Fource, entre 2020 e 2021. Procurada pela piauí, Anna Carolina não deu retorno. Seu pai, porém, disse à reportagem que os pagamentos à filha decorreram de serviços jurídicos.
A investigação da PF também encontrou contatos dos investigados com a advogada Catarina Buzzi, filha do ministro Marco Buzzi, do STJ. Além de alugar uma sala comercial de Haroldo Filho, onde funciona seu escritório em Brasília, Catarina já fez contato com Zampieri, conforme identificou a PF. “Dr. Roberto! Tomei a liberdade de pedir seu número ao Haroldo. Agora está na agenda. Foi um prazer reencontrá-lo.” Zampieri responde à gentileza: “Boa tarde, Catarina. O prazer é todo meu. Obrigado.”
Os agentes federais investigam um caso em que o empresário Carlos Alberto Chaves, dono da Brasil 10 Empreendimentos Imobiliários, afirma em uma mensagem que pagou 1,1 milhão de reais em favor de Catarina, mas está exigindo o dinheiro de volta porque “a promessa de trabalho” não foi cumprida. Na época, Chaves tinha uma ação no STJ, no gabinete do ministro Buzzi, cujo resultado lhe foi desfavorável. Quando o caso foi noticiado pelo site de notícias Metrópoles, Catarina negou que tivesse advogado para a Brasil 10 e disse que provaria na Justiça que se tratava de “denúncia vazia”. Meses depois, o caso foi encerrado com um acordo entre as partes. O dado curioso é que, no período da disputa, Catarina ainda não tinha carteira da OAB.
Ao examinar o pagamento de 1,1 milhão de reais, a piauí encontrou dados que mostram que a operação circulou pelo submundo do crime – o que é péssimo sinal para defender a legalidade da transação. A maior parte do dinheiro – 800 mil reais – caiu na conta de uma empresa hoje investigada por suspeita de lavagem de dinheiro do PCC, a principal organização criminosa do país. Uma parcela bem menor – 100 mil reais – foi depositada em favor do escritório da advogada Aline Gonçalves de Sousa, casada com o desembargador César Jatahy, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Aline de Sousa também já recebeu repasses de 938 mil reais da Florais Transportes, o propinoduto de Andreson Gonçalves, e trabalhou numa ação ao lado de Mirian, a mulher do lobista.
À piauí, Catarina Buzzi afirmou que não prestou assessoria jurídica à família Chaves, nem recebeu qualquer valor. Ela não explicou por que encerrou o processo com um acordo. Seu advogado afirmou: “É lamentável que os mesmos personagens, que tentaram criar um falso escândalo no passado, tentem [agora] misturar notícia velha com investigação em andamento para atingir determinadas pessoas.” Por meio da assessoria do STJ, o ministro Marco Buzzi disse que não acompanha as relações profissionais de sua filha, mas “tem nela uma pessoa de absoluta boa-fé”. Disse ainda que só sabe sobre as investigações da PF o que saiu na imprensa. “No mais, não cabe ao ministro tecer comentários sobre hipóteses ou deduções apriorísticas de fatos indefinidos e de pessoas não conhecidas.” Aline de Sousa não quis falar.
A quadrilha da venda de sentenças já tentou estabelecer conexões até no STF. Em um apenso da sindicância do STJ sobre o conteúdo do celular de Zampieri, ao qual a piauí também teve acesso, há uma conversa nesse sentido, que estava inédita até agora. No contexto, fica claro que Haroldo Filho havia contratado os serviços da advogada Karine Nunes Marques, irmã do ministro Kassio Nunes Marques, do STF. Na conversa, Gonçalves até repreende a estratégia de Haroldo Filho. Ele escreve: “Haroldo tem que ver que contratar parentes de ministro do Supremo não é certeza de ganhar.”
Karine Marques foi contratada por Haroldo Filho para atuar num processo da cervejaria Petrópolis. Além de Karine, a ação é assinada pelo advogado Otto Medeiros, profissional de confiança de Walter Faria, dono da Petrópolis. No entanto, não deu certo. O ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do STJ, rejeitou o pedido dos advogados – o que explica a afirmação de Gonçalves de que a contratação de parentes de magistrados não garante vitória. Mas Haroldo Filho, ainda atuando como preposto de Walter Faria, segundo se depreende das mensagens de celular de Zampieri, aparentemente insistiu na mesma estratégia e contratou a advogada Maria Carolina Feitosa de Albuquerque Tarelho, enteada do ministro Gilmar Mendes, do STF. A ação continua em curso.
Depois de publicada esta reportagem*, a advogada Maria Carolina Tarelho disse à piauí que não conhece Haroldo Filho e nunca foi contratada por ele. Frisou que, no caso da Petrópolis, de Walter Faria, está inclusive trabalhando para o outro lado – ou seja, contra o cliente de Zampieri. A advogada apresentou ainda à piauí uma petição de 31 páginas em que lança suspeitas sobre a atuação de Zampieri em Mato Grosso, em cujo Tribunal de Justiça ele conseguia comprar decisões. Em nota à revista, Karine Marques também negou ter sido contratada por Haroldo Filho, afirmou que trabalha para Walter Faria e o grupo Petrópolis muito antes de seu irmão virar ministro do STF e repudiou a ilação de que sua atuação profissional esteja vinculada a ele. “Não há nexo causal entre o parentesco e a atuação profissional de Karine”, diz a nota.
Ainvestigação do que o ministro Cristiano Zanin chamou de um “verdadeiro comércio de decisões judiciais no Superior Tribunal de Justiça” envenenou o ambiente na corte. Entre setembro e outubro, a piauí conversou com cinco ministros do STJ – dois dos quais pediram para não serem identificados. As palavras mais ouvidas nestas conversas foram “perplexidade”, “ansiedade” e “frustração”. Entre os ministros, há uma “sensação de injustiça”, pois a exposição de seus gabinetes sempre deixa no ar uma suspeita de envolvimento dos próprios magistrados no escândalo. Em uma reunião, a ministra Nancy Andrighi chegou a chorar durante um desabafo.
Demonstrando confiança nos colegas, os ministros disseram que um esquema de venda de sentenças só poderia existir à revelia dos juízes. “Se tem um poder que não pode se deixar corromper, é o Judiciário. Porque a confiança da sociedade nele decorre de um vínculo de credibilidade”, disse um deles. Outro, que recebeu a revista às 19 horas de uma quinta-feira, contou que, naquele momento, ainda tinha 356 decisões para assinar, admitindo que é impraticável que todos os processos passem pela análise aprofundada de cada ministro. Em média, cada um dos 33 gabinetes do tribunal emprega cerca de quarenta auxiliares, que fazem pesquisas jurídicas e redigem decisões que – como diz um ministro – “fazem bilionários”. Ele completa: “A ambição é rima rica para a corrupção.”
Até aqui, nenhum ministro consta na lista dos investigados, mas a expressão usada por Cristiano Zanin ao autorizar a operação policial – “verdadeiro comércio de decisões judiciais” – permanece como uma espada de Dâmocles sobre o conjunto dos ministros do STJ. Mesmo o nome da investigação da Polícia Federal, batizada como Operação Sisamnes, causa desconforto entre os ministros, já que se refere a um juiz condenado pelo rei da Pérsia a ser esfolado vivo por corrupção.
Para o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, “ninguém se sente bem com o nome do tribunal divulgado na imprensa numa circunstância como essa”. Segundo ele, o caso definitivamente “não reflete o STJ como um todo”. Cueva defende que a investigação chegue “à raiz do problema” e seja concluída “com a máxima eficiência e brevidade possível para punir os culpados e impedir que se repita”. Os ministros estão inquietos com a lentidão das apurações, que prorroga as suspeitas e impede o tribunal de virar a página. “Acho que a Polícia Federal já teve suficiente tempo para encerrar as diligências referentes ao STJ”, diz o ministro Og Fernandes. “Já decorreu quase um ano. Tem pessoa presa desde então. Já era tempo de uma conclusão indicando quem tem responsabilidade e o que precisa ser feito. Esse tempo deixa o tribunal em posição extremamente desconfortável.”
Em nota à piauí, o ministro Herman Benjamin, presidente do STJ, disse que o tribunal ainda tem investigações internas em curso e não descarta novas demissões. Também lembrou que, em novembro do ano passado, o STJ criou um grupo de trabalho para “avaliação e aprimoramento, permanente dos requisitos de segurança da informação” no tribunal.
As investigações sobre o Poder Judiciário, embora tenham se tornado um pouco mais frequentes, ainda são raras. De 2008, ano em que a contagem desses casos começou, até agora, o Conselho Nacional de Justiça aplicou apenas 215 punições, das quais 191 são contra magistrados. Além disso, neste momento, há 32 magistrados afastados de suas funções enquanto duram as investigações. Na lista de punições, há bastante diversidade. Há casos de violência psicológica, intimidação, assédio sexual, discriminação sexual e regional, corrupção e falsidade ideológica. Há também casos diretamente relacionados ao exercício profissional, como venda de sentença, morosidade excessiva, má gestão, exploração de prestígio e acesso ilegal a processos e informações sigilosas.
Neste momento, a Polícia Federal investiga um esquema de venda de sentenças no Maranhão, cujos suspeitos incluem 4 desembargadores do Tribunal de Justiça, 3 juízes e 14 ad
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