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Vendas de sentenças

Conversas no Whats revelam esquemas em recuperações judiciais em MT

Estadão começa revelar 9 mil conversas achadas no celular de advogado morto

Geral | 26 de Agosto de 2025 as 10h 11min
Fonte: Estadão

Foto: Divulgação

Peritos criminais da Polícia Federal recuperaram nove mil diálogos, via WhatsApp, entre Andreson Oliveira Gonçalves e Roberto Zampieri, personagens emblemáticos do suposto mercado de sentenças que se teria instalado em Tribunais de Justiça. ‘Lobistas dos tribunais’ - alcunha dada aos dois pelos investigadores -, agiam em sintonia à sombra da legalidade em Cortes estaduais e também em gabinetes de ministros do Superior Tribunal de Justiça, onde teriam cooptado assessores para alcançarem decisões favoráveis a seus interesses.

Mas nem tudo era céu de brigadeiro na jornada dos lobistas. É o que revela a análise dos diálogos entre os dois no âmbito de uma reclamação disciplinar instaurada pela Corregedoria Nacional de Justiça após a ‘descoberta fortuita de elementos de convicção no aparelho celular do advogado Roberto Zampieri, vítima de homicídio na cidade de Cuiabá no dia 5 de dezembro de 2023.’ “Elementos foram colhidos cautelarmente em razão do risco de destruição ou de restituição do aparelho celular”, aponta o Conselho Nacional de Justiça.

Os peritos encontraram ‘desentendimentos’ entre os lobistas, especialmente quando casos em que recursos protocolados no âmbito de ações milionárias por disputa de grandes glebas de terras em Mato Grosso caíam em ‘mãos erradas’, ou seja, com algum desembargador que não fazia parte do esquema de propinas supostamente alimentado por eles. O arquivo resgatado pelos investigadores contém 9 mil diálogos acumulados no período de 17 de junho de 2019 a 5 de dezembro de 2023.

A longa sequência de conversas dos lobistas indica que, em certas ocasiões, as boas relações davam lugar a cobranças ríspidas, desconfianças e dúvidas. Zampieri saiu de cena para sempre naquele 5 de dezembro de 2023, quando um pistoleiro de aluguel o atingiu com tiros de uma arma automática à porta de seu escritório de Cuiabá.

Andreson também não está mais operando. Ele foi preso na Operação Sisamnes - investigação a cargo do ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal. Atualmente, está em regime de prisão domiciliar.

Os investigadores se reportam a um episódio em que Andreson e Zampieri tiveram um entrevero por causa de um recurso da advogada Míriam Ribeiro Rodrigues de Mello Gonçalves - mulher de Andreson.

No dia 11 de dezembro de 2019, Andreson enviou a Zampieri o modelo de uma petição de agravo de instrumento timbrada do escritório de Míriam. O documento deveria ser distribuído ‘por prevenção’ a um processo de relatoria do desembargador João Ferreira Filho, amigo de Zampieri e de quem teria recebido propinas e mimos, como relógios de luxo.

Ao CNJ, o desembargador nega ilícitos e venda de sentenças. O Estadão pediu manifestação do magistrado. O espaço está aberto.

‘Pergunta se dá e valor’, escreveu Andreson, ‘indicando claramente possuir conhecimento da rotineira prolação de decisões judiciais mediante pagamento de vantagem indevida por parte do desembargador João Ferreira’. Dessa vez, porém, algo não saiu como o planejado.

Quem acabou tomando a decisão foi um outro magistrado, o desembargador Sebastião Barbosa Farias - seu veredicto, afinal, foi de rejeição ao pleito da advogada Míriam. O desembargador indeferiu um pedido de atribuição de efeito suspensivo, o que acabou frustrando severamente Andreson - ato contínuo, ele escreveu a Zampieri. ‘Pô, eu jogo limpo com você’ E sai uma merda dessas. Quem decidiu foi o Sebastião. Moço, olha, era falar que não ia dar. Nem era o João (Ferreira)’.

Zampieri tentou se explicar. “Andreson, deixa eu te falar uma coisa, eu te falei que o desembargador João não estava essa semana, lembra? Ontem a assessora não me disse que o desembargador Sebastião iria despachar’.

‘Você falou que tinha ido falar’, retrucou Andreson. ‘E fui’, afirmou Zampieri.

‘Foda’, insistiu Andreson.

Para tentar aplacar a ira de Andreson, o colega disse. “Agora eu vou esperar o desembargador João voltar e reconsiderar. Tenha calma, Andreson’

‘E que dia volta’, perguntou Andreson.

Zampieri sugeriu ao colega que já elaborasse o novo recurso. “Peça para (Mirian, a advogada), preparar o agravo regimental e dar entrada na segunda-feira’

Zampieri antecipou com absoluta convicção o resultado da nova investida. ‘Ele (desembargador João Ferreira Filho) vai reconsiderar. Aquele dia que falei com você eu estava com ele, no gabinete dele, ele sabe quem você é, resolve lá em cima, ele sabe que você resolveu o negócio do Jair e sabe que você é meu amigo’, escreveu Zampieri.

E reiterou, com a certeza de quem conhecia plenamente como girava a roda no gabinete de João Ferreira. ‘Prepare o agravo regimental e entra na segunda-feira. Vai ser reconsiderado.’

O Conselho Nacional de Justiça, para onde a PF encaminhou o acervo de 9 mil diálogos dos ‘lobistas dos tribunais’, avalia que, de fato, Zampieri ‘vendia a terceiros sua proximidade com o desembargador João Ferreira Filho, cobrando valores do beneficiado a título de ‘honorários advocatícios’, em razão da aludida intermediação’.

Uma semana depois do protocolo do novo recurso de Mírian, ‘conforme prometido’, no dia 27 de janeiro de 2020, Andreson enviou a Zampieri a decisão do magistrado João Ferreira ‘De fato, (o desembargador) reconsiderou a decisão anterior e conferiu efeito suspensivo ao recurso, em consonância com o almejado por Andreson’, apontam os investigadores.

Logo após o êxito, o lobista Zampieri cobrou de Andreson ‘aquele valor’ que seria para atender o ‘amigo’ - no caso, o desembargador.

Zampieri: ‘Boa noite, tudo bem? Você consegue aquele valor amanhã? Preciso atender um amigo aqui. Se puder.’

‘A primeira RG, tadinha’

Os dois voltaram às boas. A análise dos diálogos mostra que no dia 25 de janeiro de 2021, Andreson enviou a Zampieri informações sobre um outro agravo de instrumento em um processo de recuperação judicial, sob relatoria do desembargador João Ferreira Filho.

O recurso foi interposto por Mírian. Em resposta, Zampieri diz que ‘ele (desembargador) vai me receber às 13:30’. Andreson agradece e informa que é a primeira ‘RJ’” (recuperação judicial) de sua mulher.

Tempos depois, Zampieri diz que conversou ‘com ele” e que “ele lembrou do caso”, prosseguindo com a conversa para, em tese, repassar orientações de como proceder para que o pleito se sagrasse vitorioso - para ‘ser deferido na hora’.

Zampieri sacramenta. ‘Ele vai deferir o pedido da Mirian’.

Em 25 de janeiro de 2021...

Zampieri: ‘Andreson, ele vai me receber às 13:30’

Andreson: ‘Obrigado amigo. Isso é questão da Miriam e a primeira RJ dela. Tadinha’

Zampieri: ‘Conversei com ele (João Ferreira). Ele lembrou do caso. Alertou que a recuperação da empresa foi deferida, mas querem colocar junto as pessoas físicas sócios da empresa, é isso? Ele disse que pode sim ser concedido a recuperação das pessoas físicas, porém tem que ser feito também o procedimento próprio da recuperação para as pessoas físicas. E vai ser deferido na hora. Ele vai deferir o pedido da Mirian. Vai atender esse pedido que foi feito, e depois se precisar emendar algo ele me avisa’.

No dia 26 de janeiro de 2021, ou seja, um dia depois do pedido de Andreson - e conforme prometido por Zampieri - o desembargador João Ferreira Filho decidiu sobre o agravo exatamente na linha do que havia pleiteado a mulher de Andreson, a advogada Mírian Ribeiro Rodrigues.

‘Vai conceder’

Na sequência, em 26 de junho de 2021, Andreson Gonçalves procura Zampieri para conseguir uma decisão favorável durante o plantão do desembargador João Ferreira. Dessa vez, o interesse de Andreson era em um Auto de Prisão em Flagrante, que envolvia um policial militar preso em flagrante em posse de uma submetralhadora 9mm e uma pistola calibre.40, fazendo a escolta de duas pessoas que, supostamente, negociariam um barracão.

Três dias depois, em 29 de junho de 2021, Andreson informou Zampieri que impetrou habeas corpus e alertou que ‘ainda é o plantão do desembargador João Ferreira Filho.

‘É ele. 25 a 2’, é sim’

Andreson tinha pressa. ‘Dá tempo ainda hoje vê aí’

Zampieri: ‘Ele vai despachar ainda hoje só não disse o horário’ E arrematou com a certeza de sempre. ‘Vai conceder’.

Os investigadores anotaram. “Conforme prometido pelo advogado Roberto Zampieri, de fato, o desembargador João Ferreira Filho concedeu a ordem de soltura em sede de habeas corpus, durante seu plantão judiciário.”

Cumprida a promessa, no mesmo instante, Zampieri cobrou de Andreson o imediato pagamento dos ‘honorários’ combinados.

Agora era Zampieri cobrando Andreson apressadamente. ‘Bom dia dr. Andreson. Por favor organize o pagamento dos honorários ainda hoje.’

“Tendo em vista que a contraprestação acordada não foi paga por Andreson, o advogado Roberto Zampieri, incisivamente, mandou que o lobista ‘apertasse’ o beneficiário do habeas corpus, fazendo clara referência à existência de um acordo para a soltura do policial militar,” aponta o relatório do Conselho Nacional de Justiça que originou na abertura de um processo administrativo disciplinar.

‘Aperte esse senhor do HC’

Andreson, por favor, aperte esse senhor do HC, esse cidadão está muito folgado’, sugeriu Zampieri. ‘Quando precisa a gente desdobra e atende o pedido e agora não cumpre com o combinado? Aperte esse cidadão’.

No dia 12 de julho de 2021, Zampieri enviou seus dados bancários a Andreson que, em seguida, fez uma transferência de R$ 100 mil de sua empresa de transportes ‘como contrapartida’ pelo habeas concedido.

“É evidente, portanto, no caso em apreço, que tais valores não se referiam, em absoluto, a qualquer pagamento de honorários advocatícios, tendo em vista que, no caso em discussão, não houve a prática, por parte de Roberto Zampieri, de qualquer ato postulatório ou de qualquer conduta de natureza privativa de advogado. No caso vertente, tanto Zampieri como Andreson, não figuravam como advogados do paciente do referido habeas corpus.”

Os investigadores destacam o fato de que, ‘para além da possibilidade mais trivial da prática de exploração de prestígio por parte de Zampieri, é possível inferir que a decisão proferida pelo desembargador João Ferreira Filho no habeas corpus, de fato, fora proferida mediante recebimento de vantagem indevida’.

O relatório da análise do conteúdo dos diálogos dos lobistas abre um capítulo denominado ‘dos elementos indicativos de efetivo pagamento de vantagem indevida (para o desembargador João Ferreira Filho)’.

Como o Estadão noticiou, o dinheiro da propina deu suporte à aquisição de apartamentos de alto padrão por parte de João Ferreira - imóveis declarados pelo magistrado em valores muitas vezes inferiores aos que realmente foram pagos, uma estratégia de subvalorização patrimonial para os órgãos de controle não identificarem incompatibilidade entre seus rendimentos formais, subsídios pagos pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso, e um patrimônio pujante.

“Em razão dos fortíssimos elementos indicativos do possível recebimento de vantagem indevida por parte do desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, João Ferreira Filho, em conformidade com os parâmetros delineados pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n. 4709/DF, determinou-se a quebra dos sigilos bancário e fiscal do desembargador, com o escopo de analisar a compatibilidade de seus gastos e de sua movimentação financeira, com os rendimentos licitamente auferidos. Da mesma forma, foi analisado o possível recebimento, em seu próprio nome, de vantagens indevidas repassadas por terceiros.”

Os investigadores pesquisaram os bancos de dados que levam a movimentações financeiras e registros de bens de qualquer contribuinte. Para tanto, diz o relatório, foram analisadas as declarações relativas à vida financeira do desembargador no período de 2019 a 2023. Ao final, a investigação foi concentrada nas três principais contas bancárias do magistrado, que no período movimentaram ‘valores manifestamente superiores à auferida a título de salários recebidos do Tribunal de Justiça de Mato Grosso’.

O documento destaca. “Amizade íntima entre o desembargador e o advogado Roberto Zampieri, que tinha seus interesses processuais invariavelmente consagrados. Atendimento célere e por meios não convencionais, inclusive com acesso ao telefone pessoal do magistrado. Indícios contundentes de recebimento de vantagem indevida para a prolação de decisões com desvio funcional. Recursos recebidos por intermédio de esposa e de ex-servidora do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a indicar a existência das elementares dos delitos do artigo 317 do Código Penal e do artigo 1º, §1º da Lei 9.613/98 (respectivamente corrupção e lavagem de dinheiro).”