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Bom dia, Terça Feira 08 de Julho de 2025

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Caso Internacional

Represa mais alta do mundo pode causar tragédia diabolicamente apocalíptica

Educação | 07 de Julho de 2025 as 15h 14min
Fonte: Felipe van Deursen -UOL

Foto: Divulgação

Em 30 de janeiro de 2024, um terremoto atingiu a fronteira da China com o Tadjiquistão. Foi um tremor relativamente leve, uma réplica do sismo de magnitude 7 que, sete dias antes, havia matado três pessoas e deixado um prejuízo de mais de US$ 500 milhões.

É comum na região. Desde 1900, houve 18 tremores com magnitude igual ou maior a 6,5 nessa área.

O problema é que, além dos perigos de sempre relacionados a terremotos, a alta atividade sísmica traz um perigo adicional. Um lago extremamente remoto pode causar uma tragédia sem precedentes.

 

Que lugar é esse?

Lago Sarez

Lago SarezImagem: Reprodução/https://mfa.tj/

 

Um desses grandes abalos ocorreu em 18 de fevereiro de 1911, quando o atual Tadjiquistão fazia parte do Império Russo. Com uma magnitude de 7,2, o tremor foi captado até em uma estação na então capital imperial, São Petersburgo, a 3,7 mil quilômetros de distância.

O tremor causou um deslizamento de 2,2 bilhões de metros cúbicos de terra. Imagine: 880 mil piscinas olímpicas cheias de detritos que mudaram radicalmente a paisagem.

O deslocamento massivo bloqueou o Rio Bartang, formando um lago imponente. Com cinco quilômetros de extensão e um paredão de 567 metros de altura, é a represa mais alta do mundo.

Nenhuma barragem feita por humanos chega perto. A mais alta do planeta, a Jinping-I, na China, tem 305 metros de altura. No Brasil, a campeã no quesito é a Irapé, no Rio Jequitinhonha, Minas Gerais, com 208 metros.

O recorde e o nascimento de uma nova e bela paisagem vieram com o preço da tragédia. O deslizamento de terra enterrou a vila de Usoi e o lago submergiu uma outra, Sarez. Cerca de 300 pessoas morreram no episódio. Dois sobreviventes teriam descrito que, dias depois, quando a poeira enfim baixou, só então eles constataram que, no lugar onde ficava Usoi, brotou uma montanha.

Das vilas, restaram apenas os nomes, usados para batizar os novos locais que brotaram da calamidade. Usoi virou a barragem e Sarez, o lago.

Desde então, Sarez é um potencial desastre. A ruptura da represa pode provocar uma tragédia diabolicamente maior do que aquela que a criou, mais de 100 anos atrás.

O local é uma bomba-relógio de dimensões apocalípticas. E não é que faltaram recados ao longo das décadas.

Em 1968, segundo o jornal online "The Times of Central Asia", um deslizamento de terra sobre o lago provocou ondas de dois metros de altura, por exemplo. Em 1997, um estudo concluiu que Usoi é instável, e que um terremoto poderoso poderia destruí-la. Com o derretimento de geleiras no entorno, o nível da água vem subindo cerca de 20 centímetros por ano, aumentando a pressão sobre a barragem.

A maior ameaça, no entanto, não está no lago nem na barragem natural. Existe um naco de cerca de 1,9 bilhão de metros cúbicos parcialmente desprendido na montanha. É o equivalente a 760 mil piscinas olímpicas, ou seja, um volume não muito menor do que aquele que causou a formação do lago.

Se essa formação rochosa maciça e precária se desprender e mergulhar na água, será o caos. O evento poderia desencadear uma inundação catastrófica.

O governo até tentou encontrar soluções. Nos anos 1970, quando o Tadjiquistão era uma república soviética, houve planos para construir uma hidrelétrica ali. Até um túnel sob o lago, para drená-lo aos poucos, foi cogitado.

Mas o isolamento da região, no meio das montanhas Pamir, cordilheira com picos que ultrapassam 7 mil metros de altitude, e distante mais de 250 quilômetros da cidade média mais próxima, jogou a ideia no vinagre. A hidrelétrica nunca saiu do papel.

Em 2018, surgiu um plano mais inusitado. O governo firmou um acordo com uma empresa de Hong Kong para explorar a água do lago, chamada de "ouro azul".

De novo, o isolamento da região impediu a comercialização do Sarez na forma de garrafinhas de água mineral. Além dos riscos imensos, o lago não trazia nenhuma renda para o país.

Turismo? Até poderia, pois o lago é lindo. Mas é preciso uma permissão especial e contratar agências específicas. É uma região isolada, sem infraestrutura, ligada ao resto do mundo por duas estradas que não raro fecham, devido ao mau tempo.

Fora o detalhe nada irrelevante de que se trata de um dos países mais fechados do mundo. Não é fácil encontrar alguém que formule uma frase com as palavras "férias" e "Tadjiquistão", certo?

"Maior desastre natural de todos os tempos"

Deslocamento de terra entre 1911 e 1915

Deslocamento de terra entre 1911 e 1915Imagem: Keith B. Delaney

Se houver um terremoto forte o bastante para destruir a barragem ou derrubar o rochedo pendente no lago, o desastre tem o potencial de atingir proporções de Velho Testamento. Visualize o cenário.

Ondas de 250 metros de altura varreriam o vale abaixo a uma velocidade de seis metros por segundo. Cerca de 130 mil pessoas poderiam morrer nas imediações, mas um total de 6 milhões habitam a área de risco.

Geofísicos consultados pelo "Times of Central Asia" calcularam que o número de mortos poderia chegar a 600 mil. Quem sobrevivesse às inundações perderia sua casa e o acesso a água potável.

O risco de contaminação seria grande, pois a água atingiria cemitérios e valas usadas para enterrar gado. Além de contaminação, as ondas espalhariam também minas terrestres ativas, desenterrando os traumas da guerra civil que dividiu o país entre comunistas e grupos islâmicos após a independência, entre 1992 e 1997.

Haveria milhões de refugiados em direção aos países vizinhos, que também sofreriam com o colapso. Isso em uma região em que o acesso a água já é um problema.

Em 1999, a ONU fez um levantamento e constatou que se trata, "potencialmente, do pior desastre natural da história". Além da tragédia humanitária, a desgraça seria enorme também para a biodiversidade, a geopolítica e a economia.

"Inundações causadas por uma fissura na barragem enviariam bilhões de litros de água, detritos rochosos e sedimentos pelos rios Bartang, Panj e Amu Darya, possivelmente até o Mar de Aral, afetando milhões de pessoas no Tadjiquistão, Afeganistão, Uzbequistão, Turcomenistão e Cazaquistão.

"Também está em risco a biodiversidade única das Pamir e de diversas reservas naturais no oeste do Tadjiquistão, lar de espécies protegidas internacionalmente, como o raríssimo leopardo-das-neves e o veado-vermelho-de-bukhara. Só o Vale do Bartang abriga mais de 1,2 mil espécies de plantas diferentes, muitas delas não encontradas em nenhum outro lugar do mundo."

No pior dos cenários, seria uma hecatombe que mataria quase três vezes mais do que o Tsunami de 2004. Mas nem todo mundo está convencido do tamanho do risco.

 

"Não é bem assim"?

Lago Sarez

Lago SarezImagem: Reprodução/https://centralasiaclimateportal.org/

Em 2004, o Banco Mundial fez um estudo que concluiu que o Sarez era, sim, seguro. O país, comandado pelo presidente Emomali Rakhmon desde 1992, não tomou nenhuma grande iniciativa em relação ao lago desde o plano fracassado das águas engarrafadas, há sete anos.

Por outro lado, a aposta tadjique em grandes barragens artificiais está à toda. O país já tem a Nurek Dam, uma das maiores e a segunda mais alta do mundo.

(Sim, eu sei você se perguntou: Itaipu é, hoje, a terceira maior hidrelétrica do mundo em capacidade instalada, atrás de duas chinesas. Ano passado, ela entrou para o Guinness como a maior produtora de energia elétrica acumulada do planeta.

Desde os anos 1970, o Tadjiquistão está construindo a usina de Rogun. O projeto foi abandonado após o colapso soviético, e depois foi retomado, com apoio internacional.

Quando concluída, a barragem terá 335 metros de altura. Será a mais alta do mundo. Mas a um custo que tem gerado muita polêmica.

Em 2024, os ambientalistas Eugene Simonov e Manana Kockladze assinaram um artigo para o site da rede Al Jazeera elencando os problemas da obra faraônica. Menos de 25% da usina está pronto, e ainda assim mais de 7 mil pessoas já foram deslocadas, em um processo que as deixou mais vulneráveis e sem compensação econômica satisfatória, segundo a organização Humans Rights Watch.

Estima-se que até 60 mil pessoas serão deslocadas. Os impactos ambientais também podem ser devastadores: a inundação atingiria uma área de florestas com rica biodiversidade, a Reserva Natural de Tigrovaya Balka, patrimônio natural da Unesco.

De acordo com os autores, a hidrelétrica, construída no Rio Vakhsh, vai trazer impactos tremendos às comunidades que habitam essa bacia, incluindo cidades nos vizinhos Uzbequistão e Turcomenistão.

Até o Mar de Aral, o lago que secou quase por completo por causa de uma das maiores cretinices feitas em nome do "crescimento econômico" no século 20, pode sofrer (ainda mais) com a nova barragem. Já falei da saga do Aral aqui na coluna.

O governo do país segue em frente porque alega que se trata de uma questão de vida ou morte. O Tadjiquistão é um território que sofre com falta de acesso crônica a água e onde menos de 10% das terras são adequadas para a agricultura.

"O Tajiquistão é conhecido por sua repressão à liberdade de expressão e sufocamento da sociedade civil. É um país em que defensores dos direitos humanos e jornalistas são rotineiramente presos e atacados, e a tortura policial é generalizada", escreveram os autores. Uma diminuição do acesso a água em regiões em que isso já é algo complicado pode levar a mais tensão social.

Para eles, diminuir o tamanho mastodôntico da obra e investir o dinheiro economizado em usinas de energia solar seria mais prudente. Reduziria o impacto socioambiental da hidrelétrica e deixaria o país menos dependente de uma energia suscetível a oscilações de produção, uma vez que a região sofre com secas cada vez mais frequentes.

O Banco Mundial, por sua vez, concluiu que os prós superam os contras. Desde 2011 a instituição vem encorajando a obra por meio de estudos e levantamentos.

No fim do ano passado, ela aprovou um investimento de US$ 350 milhões. "A usina proporcionará melhor acesso a eletricidade a cerca de 10 milhões de pessoas e ajudará a aliviar a escassez de energia que se tornou persistente durante o inverno", informou o Banco Mundial, em nota.

"Além disso, cerca de 70% da eletricidade gerada pela Rogun será exportada para o Cazaquistão e o Uzbequistão. Isso substituirá a geração de combustíveis fósseis a um preço acessível, reduzindo assim as emissões de gases de efeito estufa."

Entre o rompimento de uma represa natural e a construção de uma artificial, existe um alívio em meio a esses cenários (em que pelo menos um não traz nada de positivo). Em um hipotético colapso da barragem de Usoi, a água do lago Sarez não engoliria as obras da hidrelétrica de Rogun nem, consequentemente, a represa que ela formará quando estiver pronta.

Não haveria, portanto, um megazord lacustre para afogar a Ásia Central. Ainda assim, a perspectiva é assustadora.