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'Àgua doce secreta'

Pesquisadores encontram reserva de água doce submarina que pode abastecer milhões; entenda

Expedição internacional identificou reservas ocultas entre Nova Jersey e Maine, nos EUA. Achado reacende debate sobre soluções para a crise hídrica global.

Economia | 11 de Setembro de 2025 as 15h 28min
Fonte: Redação G1

Foto: Carolyn Kaster/AP

Há milhares de anos, quando as geleiras começaram a derreter e o nível dos oceanos subiu na região que hoje corresponde ao nordeste dos Estados Unidos, algo inesperado ficou guardado sob o fundo do mar.

Quase 50 anos atrás, um navio do governo norte-americano que buscava minerais e petróleo perfurou o solo marinho para ver o que encontrava. Encontrou algo surpreendente: água doce.

Neste verão do Hemisfério Norte, uma expedição científica global inédita voltou ao local para investigar. Perfurações feitas ao largo de Cape Cod, em Massachusetts, revelaram milhares de amostras de um aquífero subterrâneo que pode se estender de Nova Jersey até o estado do Maine.

É apenas um dos muitos depósitos de “água doce secreta” que se sabe existirem em mares rasos do planeta e que talvez, no futuro, possam ser aproveitados para saciar a sede crescente da humanidade, explica Brandon Dugan, co-chefe científico da missão.

“Precisamos olhar para todas as possibilidades que temos para encontrar mais água para a sociedade”, disse Dugan, geofísico e hidrólogo da Colorado School of Mines, em entrevista à Associated Press durante 12 horas passadas na plataforma de perfuração.

Tubo de perfuração é visto sob a plataforma Liftboat Robert, a partir da embarcação de apoio Gaspee, no Atlântico Norte, em 19 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

Tubo de perfuração é visto sob a plataforma Liftboat Robert, a partir da embarcação de apoio Gaspee, no Atlântico Norte, em 19 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

 

Segundo ele, a equipe buscou água “em um dos últimos lugares onde alguém provavelmente procuraria por água doce na Terra”.

Os cientistas encontraram. E agora vão analisar, nos próximos meses, quase 50 mil litros dessa água em laboratórios espalhados pelo mundo. O objetivo é decifrar sua origem — se veio do derretimento de geleiras, de sistemas subterrâneos conectados ao continente ou de uma mistura dos dois.

O potencial é enorme. Mas também os desafios: extrair essa água, decidir quem seria dono dela, quem poderia usá-la e como fazê-lo sem causar danos à natureza. Mesmo que viável, levar essa água à costa para uso público em larga escala deve levar anos.

Pesquisadores da Expedição 501, entre eles Brandon Dugan, co-chefe científico da missão, transportam amostras para um contêiner refrigerado a bordo da plataforma Liftboat Robert, no Atlântico Norte, em 20 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

O velho marinheiro já avisava

Por que insistir? Em apenas cinco anos, segundo a ONU, a demanda global por água doce deve superar a oferta em 40%. O aumento do nível do mar, causado pelo aquecimento climático, já contamina reservatórios costeiros de água doce, enquanto os data centers que sustentam a inteligência artificial e a computação em nuvem consomem água em ritmo insaciável.

A famosa lamentação do marinheiro na obra clássica de Samuel Taylor Coleridge, “Água, água por toda parte, e nenhuma gota para beber”, hoje serve de aviso tanto para marinheiros em alto-mar quanto para moradores em terra firme.

Na Virgínia, por exemplo, um quarto de toda a energia produzida no estado já vai para data centers, proporção que deve quase dobrar em cinco anos. Cada centro de médio porte consome, em média, tanta água quanto mil casas. Estados vizinhos aos Grandes Lagos também enfrentam escassez de água subterrânea.

Em Cidade do Cabo (África do Sul), quase 5 milhões de habitantes ficaram prestes a ficar sem água em 2018, durante uma seca histórica de três anos. Pesquisadores acreditam que a África do Sul também possui reservas submarinas de água doce, e há indícios de que cada continente pode ter depósitos semelhantes.

Água residual jorra da perfuratriz de sondagem da Expedição 501 durante operação a bordo da plataforma Liftboat Robert, no Atlântico Norte, em 20 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

Locais como a Ilha do Príncipe Eduardo (Canadá), o Havaí (EUA) e Jacarta (Indonésia) já enfrentam estresse hídrico em terra firme ao mesmo tempo em que podem abrigar aquíferos sob o mar.

A Expedition 501 custou US$ 25 milhões e reuniu cientistas de mais de uma dezena de países, financiada pela Fundação Nacional de Ciências dos EUA e pelo Consórcio Europeu de Perfuração em Pesquisa Oceânica. (O financiamento americano foi garantido antes dos cortes de orçamento buscados pelo governo Donald Trump).

Os pesquisadores acreditavam que o aquífero poderia abastecer uma cidade do tamanho de Nova York por 800 anos. E encontraram água doce em profundidades maiores e menores do que o esperado, sugerindo uma reserva ainda maior.

"Drill, baby, dril". Mas desta vez, por água

O trabalho no mar durou três meses a bordo do Liftboat Robert, uma embarcação que, ao chegar ao local, baixa três enormes pilares até o fundo e fica suspensa sobre as ondas. Normalmente usada em plataformas de petróleo e parques eólicos offshore, a missão desta vez era diferente.

“Sabemos que esse fenômeno existe aqui e em outras partes do mundo”, disse Jez Everest, gerente do projeto e cientista do British Geological Survey, em Edimburgo, na Escócia. “Mas nunca foi diretamente investigado por um projeto de pesquisa antes.”

Ou seja: nenhuma equipe havia perfurado sistematicamente o leito marinho em busca de água doce. A Expedition 501 foi literalmente pioneira — atingindo até 400 metros de profundidade sob o leito oceânico.

Essa expedição seguiu os passos de uma pesquisa de 2015, que havia mapeado o aquífero usando tecnologia eletromagnética para estimar a salinidade da água.

Na época, a Woods Hole Oceanographic Institution e o Observatório Lamont-Doherty da Universidade Columbia já apontavam evidências de um “aquífero submarino maciço” na região, comparável em tamanho ao Ogallala, maior aquífero dos EUA.

O interesse em água doce sob o mar, porém, é mais antigo. Em 1976, o Serviço Geológico dos EUA (USGS) perfurou um poço de teste na ilha de Nantucket (Massachusetts) e retirou água doce de profundidades tão grandes que os cientistas se perguntaram se não viria do mar.

No mesmo ano, o governo norte-americano organizou uma expedição de 60 dias com o navio Glomar Conception, que perfurou trechos da plataforma continental entre a Geórgia e a Nova Inglaterra. Encontraram água doce ou parcialmente dessalinizada em diversos pontos.

Isso abriu caminho para os caçadores de água meio século depois.

Integrantes da Expedição 501 observam da plataforma Liftboat Robert a aproximação do Gaspee, embarcação de apoio usada para transporte de tripulação, no Atlântico Norte, em 19 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

O momento "eureka" chegou cedo

Logo após a chegada do Liftboat Robert ao primeiro dos três pontos de perfuração, em 19 de maio, amostras retiradas do subsolo apresentaram salinidade de apenas 4 partes por mil. O oceano, em média, tem 35 partes por mil.

“Quatro por mil foi um momento eureka”, disse Dugan. A descoberta sugeria que a água já esteve ou ainda está conectada a sistemas terrestres.

À medida que a expedição avançava, perfurações feitas a 30 a 50 km da costa trouxeram amostras com salinidade ainda menor, chegando a 1 parte por mil — equivalente à água doce que bebemos em terra firme.

Teoricamente, era água potável. Mas ninguém se atreveu a beber.

Ainda não é hora de beber essa água

Nos próximos meses, os cientistas vão analisar as propriedades da água: quais microrganismos vivem ali, de que nutrientes precisam, quais subprodutos geram — em resumo, se a água é segura para consumo.

“É um ambiente novo, nunca estudado antes”, explicou Jocelyne DiRuggiero, bióloga da Universidade Johns Hopkins, que pesquisa microrganismos em ambientes extremos. “A água pode conter minerais nocivos à saúde humana, já que percolou por camadas de sedimentos. Mas os aquíferos terrestres também se formam assim — e geralmente têm água de alta qualidade.”

O sequenciamento de DNA das amostras vai revelar quais microrganismos existem ali e como sobrevivem.

Outro ponto crucial: determinar a idade da água. Se for milenar, vinda do derretimento de geleiras, o recurso pode ser finito. Mas se for mais recente, resultado de infiltração continental, significa que o aquífero ainda se recarrega, ainda que lentamente.

“Se for jovem, significa que foi uma gota de chuva há 100 ou 200 anos”, disse Dugan. “Se for jovem, está recarregando.”

Integrantes da Expedição 501 descem da plataforma Liftboat Robert para o navio de apoio Gaspee em uma cesta de transferência Billy Pugh, no Atlântico Norte, em 19 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

Integrantes da Expedição 501 descem da plataforma Liftboat Robert para o navio de apoio Gaspee em uma cesta de transferência Billy Pugh, no Atlântico Norte, em 19 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

Questões para ciência e sociedade

Para a ciência básica, é uma questão de origem. Para a sociedade, as dúvidas são maiores: quem administraria essa água? É possível extraí-la sem contaminar a reserva com água salgada? Seria mais barato e sustentável do que as atuais usinas de dessalinização?

Dugan disse que, se governos decidirem explorar, comunidades costeiras poderiam recorrer a esses aquíferos em casos de seca ou enchentes que contaminem reservatórios. Mas a ideia de usar essa água ainda é tão nova que nem entrou no radar de formuladores de políticas.

“É uma lição de como às vezes pode levar muito tempo para viabilizar essas coisas, e da perseverança necessária para chegar lá”, disse Rob Evans, geofísico de Woods Hole, cuja expedição em 2015 apontou o caminho para a 501. “Há uma empolgação enorme por finalmente termos amostras.

Ainda assim, ele alerta para riscos. Extrair água desses aquíferos pode alterar reservas terrestres conectadas. Além disso, a água subterrânea que escapa para o leito oceânico pode fornecer nutrientes vitais para ecossistemas.

“Se começássemos a bombear agora, quase certamente haveria consequências imprevistas”, disse Evans. “Precisaríamos de muito equilíbrio antes de avançar.”

A pesquisadora Alizé Longeau, da Expedição 501, coleta amostras de água de núcleos de perfuração a bordo da plataforma Liftboat Robert, no Atlântico Norte, na madrugada de 20 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

A pesquisadora Alizé Longeau, da Expedição 501, coleta amostras de água de núcleos de perfuração a bordo da plataforma Liftboat Robert, no Atlântico Norte, na madrugada de 20 de julho de 2025. — Foto: Carolyn Kaster/AP

Longe de casa

Para os participantes, chegar ao Liftboat Robert exigia uma viagem de mais de 7 horas desde Fall River, Massachusetts, em barcos de apoio que faziam a rota a cada 10 dias, levando suprimentos e revezando equipes.

Na plataforma, o barulho metálico dos canos de perfuração e o cheiro de lama se misturavam ao trabalho silencioso de cientistas em laboratórios improvisados. Amostras eram cortadas em discos, congeladas, filtradas ou seladas para estudos de gases antigos dissolvidos.

Depois de seis meses de análises, as equipes vão se reunir novamente — desta vez, na Alemanha — para um mês de pesquisa conjunta que deve trazer as primeiras conclusões sobre a origem e a idade da água.

Em 31 de julho, o Liftboat Robert suspendeu suas colunas e deixou o Atlântico, encerrando uma missão que deu novo sentido a outro verso de Coleridge, no clássico A Balada do Velho Marinheiro:

“Acredito prontamente que há mais naturezas invisíveis do que visíveis no universo.”