Artigo
Um sorriso negro
“Eu não estou aceitando as coisas que eu não posso mudar, estou mudando as coisas que eu não posso aceitar.” (Ângela Davis)
22 de Novembro de 2023 as 11h 30min
Fonte: Júlio Casé
Há alguns dias atrás, eu atendi uma paciente que estava em franco sofrimento mental. Preta, concursada, trabalhadora de serviços gerais. Angustiada e chorosa por causa de seus pares à hostiliza-la por apresentar um cheiro característico na axila. Ela padecia de hiperidrose, um problema nas glândulas sudoríparas que aumenta a produção de suor e consequentemente o odor, muitas vezes relacionados a processo de fermentação de bactérias locais. Em 30 minutos de consulta, ela me apresentou todo tipo de sabotagem que pudesse sofrer e, nenhuma solução para o problema. Ela já havia tentado vários tipos de substâncias para amenizar o odor. Contava o sofrimento com lágrimas nos olhos, pois até produtos de limpeza, com risco à saúde, ela já havia se submetido.
O preconceito ainda impera Brasil e mundo afora. As campanhas Antirracismo são atualizadas diariamente e, não é à toa. Milhares de pretos sofrem a todo o tempo os mais variados insultos e lutam para sobreviver aos escárnios impostos pela sociedade. Sejam em um voo, no ônibus, no shopping, no trabalho, nos locais de grande acesso e incrivelmente nas ruas. Ao tentar assumir sua verdadeira identidade, exibindo vestes, trajes, adereços da cultura afro, o risco é grande para os negros. É como se ser preto fosse exceção. O diferente.
Há alguns dias atrás meu pequeno já experimentava as agruras do escárnio alheio. Ao brincar em uma brinquedoteca de um restaurante que comumente frequentamos, uma criança com cerca de 5 anos se aproxima e pergunta por que minha esposa estava com aquele menino com a cor da pele diferente da sua. Uma vez que sendo preto, ele não poderia ser filho dela. Vale a recordação que aos cinco anos de idade, somos fiéis imitadores ou repetidores do que estamos captando do ambiente que nos rodeia. Incluindo nosso lar.
Muito há por se fazer em tempos tão sombrios. Seja no país ou extramuros. A avalanche social da busca incessante da democracia velada em um direito individual do “respeito ao meu espaço” faz a pessoa chegar ao extremo de “selecionar” suas conveniências. Excluem-se pretos, pobres, LGBTs, indígenas, partidários políticos ou religiões opostas, e quem mais for considerado inconveniente na rede de amizade ou na convivência. Como o mundo é permissível, prevalece o juízo individual de cada um, baseado naquilo que lhe foi construído.
Tenho peregrinado por um mundo de grandes conquistas apesar de alguns anos atrás ser- me inculcado que preto pobre não pode conquistar muita coisa. Não pode ter faculdade, ter carro, viajar de avião e não deve contestar a nenhuma discussão. Deveria se ver isso tudo apenas e não viver, não reagir. Tenho conseguido provar o contrário. Como médico, professor universitário, formador de opinião em canais de comunicação como radio, TV, comunicação escrita, tenho me posicionado de alguma forma. Não impondo e sim mostrando, provando e conquistando e oferecendo uma forma diferente de pensar. As duras penas, pois, a cada certo tempo, insistem em fazer com que eu jamais esqueça a minha essência. Não pelo orgulho que ela me deu, mas pelo desejo que muitos têm, de que eu volte atrás e cancele minha história. Felizmente ela já está sendo escrita e, ela mesma se encarrega de me posicionar onde eu muitos pretos desejariam estar.
Que os novembros negros possam contagiar os outros meses mostrando um universo mais inclusivo e agradável de se viver e, que os amanhãs sejam de brancos, pretos, indígenas, pobres, gays e de qualquer um que o queira viver. É isso. Enquanto o “isso” não acontece, eu vou de alguma forma mostrando que mesmo sendo muitas vezes, o único médico preto do plantão (como me foi indagado há alguns dias atrás), sempre será possível estender atenção humana, e qual e inclusiva. Sem muito provar. Apenas fazendo, fazendo e fazendo e, no final, estender um Sorriso Negro para os que se sintam acolhidos.
*Julio César Marques de Aquino (Júlio Casé) é médico de Família e Comunidade pela SMS- Sinop/MT. Professor de medicina de pela UFMT campus Sinop. Autor do livro “Receitas para a vida” pela editora Oiticica. Medico residente de Psiquiatria HMCL - SMS - São Paulo. Titular da cadeira número 35 da Academia Sinopense de Ciências e Letras cujo o patrono é o médico e escritor Moacyr Scliar. Contato: email: juliocasemed@gmail.com.
Júlio Casé
Artigo
*Julio César Marques de Aquino (Júlio Casé) é médico psiquiatra pelo Hospital Municipal do Campo Limpo - SMS - São Paulo- SP. Médico de Família e Comunidade pela SMS- Sinop - MT. Professor de medicina pela UFMT campus Sinop - MT. Autor do livro “Receitas para a vida” pela editora Oiticica. Titular da cadeira número 35 da Academia Sinopense de Ciências e Letras cujo o patrono é o médico e escritor Moacyr Scliar. Contato: email: juliocasemed@gmail.com.