Artigo
A pergunta do meu chefe
04 de Abril de 2025 as 16h 11min
Fonte: Jamerson Miléski
Há 10 anos meu chefe me pergunta algo que não consigo responder. Ele sabe que sou enxerido, sempre futucando um documento como se fosse uma traça digital. Por isso, quando ele quer saber de algo que não está por aí, explícito nos google de whatsapp, ele resolve fazer sua pesquisa mandando uma mensagem para mim.
Não são poucas. Algumas indagações são respondidas de pronto. São coisas que estão bem frescas na memória. Outras questões levam um dia ou dois, até achar o papel certo ou falar com a pessoa errada. Nesses mais de 15 anos que interagimos, apenas uma pergunta ficou para trás sem resposta. E ela já foi feita há 10 anos.
Cada ser humano tem suas manias. Entre as peculiaridades de nossa espécie está o costume de desgostar de algo trivial. Pode ser uma bobagem do dia a dia, mas que o simples fato de pensar em fazer aquilo já azeda o humor. No meu caso é guardar faca boa na gaveta de talheres. Só de pensar, a sobrancelha já cai. Embora eu passe horas cozinhando com prazer, detesto lavar as folhas da salada. É assim: cada um tem uma coisa banal que não suporta.
Para o meu chefe é chamar o limpa-fossa. O ódio reina e blasfêmias pulam da sua boca só de pensar em contratar o serviço. Não sei qual é a história por trás (se é que existe alguma). O fato é que a fossa séptica, especificamente de sua casa, lhe atormenta.
E é por isso que 10 anos atrás, lá em 2015 ele me fez a fatídica pergunta: “quando vai passar a rede de esgoto lá em casa?”
Eu havia acompanhado todo o processo de concessão dos serviços de água e esgoto de Sinop, que passaram da Autarquia SAAES para a empresa privada do Grupo Aegea, a Águas de Sinop. Processo consolidado em dezembro de 2014, justificado com as promessas de que agora o sistema de coleta e tratamento de esgoto iriam andar. Meu chefe morava em uma das primeiras ruas do Jardim Maringá, bairro perto do centro. Então lá pela metade de 2015 ele já estava me perguntando quando que a rede ia passar na rua dele.
O contrato de concessão previa o avanço da rede de esgoto de ano em ano, com uma taxa de evolução de 10%. Tentei saber se a “rua do chefe” estava nos primeiros 10%, que seriam implantados em 2015. Depois, se estariam nos 20% de 2016 e assim sucessivamente. Diante da imprecisão da informação que eu conseguia, soltava uma galhofa: “até 2024 chega”.
Era para ser uma piada. Afinal, 2024 era o prazo final para a Águas de Sinop “universalizar” os serviços de coleta e tratamento de esgoto em Sinop. Em 10 anos a iniciativa privada faria aquilo que o poder público não foi capaz de fazer: chegar a uma cobertura de 98% dos domicílios de Sinop. Foi pra isso que a concessão foi feita. Mas não foi assim que aconteceu.
Pelo menos uma vez por ano meu chefe repetia a pergunta. Sei lá, acho que sempre na semana que ele precisava chamar o ‘besourão’. E toda vez eu não tinha uma resposta para sua questão. Logo em 2016 os termos iniciais da concessão foram para o esgoto, sendo reformulados após a empresa não conseguir atingir a meta. Parâmetros foram rearranjados também 2018, 2020, 2022... geralmente em anos eleitorais – sempre empurrando a meta do esgoto mais para frente. Chegou em um ponto que já não me atenho ao calendário do contrato de concessão. Ele serve tanto quanto a fossa do meu chefe: dura nada e precisa ser limpo a cada um ou dois anos.
Faz um tempo que meu chefe já não faz a pergunta. Acho que se mudou, chamou um pedreiro ou simplesmente cansou. Eis então que nessa sexta-feira, 4 de abril de 2025, recebo um “orgulhoso” material enviado pela assessoria de comunicação da Águas de Sinop. Abusando de termos como “compromisso”, “responsabilidade” e “eficiência”, a companhia anunciou as obras de esgoto que pretende realizar ao longo de 2025. Olhei na lista de locais que vão receber a intervenção e adivinha só? Lá estava o Jardim Maringá.
Então talvez final do ano eu consiga responder a pergunta do meu chefe. Final de ano porque essa é a previsão da Águas de Sinop para fazer esse pedaço de rede. Mas então, vendo o resto do texto, percebi que talvez esse tubo seja muito mais embaixo.
A Águas de Sinop afirma que com essa obra atingirá 40% de cobertura. Mas olha a conta: serão 10 mil novas ligações domiciliares, beneficiando 44 mil pessoas. Na conta da Águas, cada casa tem 4,4 moradores - já a do IBGE crava em 2,8 pessoas por residência. A empresa ainda atesta que a cobertura atual da rede de esgoto é de 30%. Ou seja: em 10 anos de concessão a AEGEA fez o que deveria ter sido feito em 3 anos, segundo o contrato de concessão. É muito “compromisso”.
Seguindo essa matemática, na base do 3 pra 1, vai chegar ao final do contrato de concessão e ainda terá esgoto para o Poder Público fazer. Mas esse é um problema para os jornalistas do futuro.
Talvez eles também levem 10 anos para responder a pergunta dos seus chefes, do morador, do investidor, do ambientalista, da criança que cresceu um pouco mais politizada... O futuro à Ager pertence.
Jamerson Miléski
O Observador